Seja como mestre ou jogador, todos nós já tivemos nossa dose de aventuras memoráveis, medianas e horríveis. Faz parte da natureza estatística das coisas. Não faz muito tempo que um colega me pediu um conselho sobre como lidar com uma mesa na qual alguns jogadores simplesmente não estavam colaborando com o fluir da narrativa, o que me forçou a resgatar da memória muitas experiências. Mas um subproduto emergiu desta lista indutiva, semeado pela questão: "qual é a essência de uma mesa divertida?". É disso que quero falar aqui.
Para os impacientes, aqui vai a resposta em três palavras: curadoria, engajamento e confiança.
Curadoria
Escolher os jogadores adequados para a mesa é mais importante que o mais exímio preparo de aventuras. Um mestre novato com jogadores que são compatíveis com sua visão narrativa e possuem uma ótima dinâmica entre si conseguirá proporcionar uma sessão mais divertida que um mestre perito com jogadores caóticos e rudes.
Conto uma anedota, que já contei por aí. Há alguns anos, estava em um bar com três amigos. Já estávamos saturados do local, mas ainda era cedo. Um deles propôs uma jogatina de RPG surpresa, zero preparo, só risadas. Topei. Mestrei sacando um mapa online e uma página aleatória de um bestiário. Muita coisa inusitada, muita coisa memorável. Foi uma sessão divertidíssima.
Mestrar ou jogar com poucos e bons é algo que não consigo deixar de enfatizar. Se você é jogador e é convidado para uma mesa cujo mestre não te agrada, recuse o convite e use seu tempo para algo melhor. Para os mestres, não convide aquele amigo do peito que te conhece há muitos anos, mas que é um chato de primeiro calibre enquanto jogador. Isso, por si só, já irá tirar muito peso das suas costas. Se você jogar com estranhos, o risco de uma mesa instável é maior, mas a vida é assim: aprende-se de iteração em iteração. O importante é que, de sessão em sessão, o pilar da curadoria sempre esteja presente. Evite campanhas longas com estranhos, use one-shots para filtrar o joio do trigo. Quando chegar a um grupo consistente, aí sim assuma o risco de longo prazo.
Bem, é isso. Priorize a melhor dinâmica possível entre mestre-jogador e jogador-jogador antes de entrar de cabeça em uma aventura.
Engajamento
Mestrar um western para jogadores aficcionados por alta fantasia medieval não é uma boa ideia, obviamente. É possível que seja divertida, sim, mas tal surpresa e incompatibilidade pode tirar toda a carga afetiva dos jogadores em relação ao enredo, o que gera um espiral negativo de afastamento (ou até repulsa) e falta de foco.
Alinhar-se em temática e estilo de jogo com os jogadores é um grande trunfo do divertimento. O jogador amante de espada e feitiçaria e de dragões certamente irá manter-se engajado ao encontrar fragmentos de uma "espada esmeralda", que, ao final de uma longa campanha lhe conferirá poderes para domesticar um dragão verde. O aficionado por história ficará entretido ao ver que poderá vivenciar a vida de um legionário em minúcias durante o triunvirato. Um fanático por Poirot perderá noites de sono com suas anotações para desvendar o mistério "do colar fantasma". Como diz o ditado: "cada um com seu cada qual". Em suma, engajamento é empolgação aliada à magnitude de participação no jogo.
O diálogo é muito importante aqui. Medir a empolgação da pessoa é essencial antes de chamá-la para jogar. É a clássica distinção entre o "pode ser, depois a gente marca" e o "bora hoje?". Quem já jogou com um grupo empolgado e engajado poderá atestar que, mesmo quando o mestre comete erros e está mal preparado, a mesa vira uma entidade cósmica e faz as coisas acontecerem (bem, por um tempo, como veremos depois).
Muitas outras coisas afetam o engajamento, tais como técnicas de mestragem ("evitar remover a agência dos jogadores", "evitar trilhos", "criar desafios com múltiplas soluções abertas" etc.). Como estamos falando de pilares basais, se você, mestre ou jogador, estiver empolgado com o prospecto de jogo, isso te levará longe. O método de verificação da empolgação é a participação em mesa. Se todos os jogadores estiverem participando bastante e nenhum estiver consultando o celular a cada minuto, há altas chances de que estejam empolgados.
Confiança
Sobre os dois primeiros pilares, se pudesse estimar sua contribuição para a diversão à mesa, diria que abarcam 60 a 70% disso. Mas falta uma pitada aristotélica. É assombroso como a tríade "Ethos", "Pathos" e "Logos" funciona na vida.
Você tem uma boa dinâmica entre mestre e jogador, há uma ética de jogo boa. Todos estão empolgados e engajados na trama, a emoção está nas alturas. Mas aí começam algumas incertezas e o caldo engrossa. O mestre aplica dois pesos e duas medidas porque não se dá ao trabalho de entender as regras do jogo, ou privilegia um jogador especial, ou ainda arbitra de modo caótico e inconsistente em geral (especialmente em jogos rules-light). Quando os jogadores se sentem injustiçados por muitas vezes consecutivas, eles perdem a confiança no mestre, e qualquer coisa que venha a ocorrer no jogo começa a perder valor: "para quê vou tentar esse grande risco, se sei que o mestre poderá alterar as regras do jogo arbitrariamente e a qualquer momento?" ou "vou falar para fulano tentar isso aqui, porque o mestre gosta mais dele, fazer o quê?" Como se engajar nessas situações? Se o pilar da confiança começa a ruir, não tardará muito para os outros dois também ruirem.
Assim, se o mestre possui alguma autoridade, ela não é gratuita: não se trata de um jogo sádico de poder, no qual uma pessoa trata as demais como peões em sua fantasia macabra. É preciso ter coerência e consistência. Mesmo que o mestre não saiba as regras do jogo, sempre é possível abrir o diálogo e tomar notas ao vivo para garantir que a mesma arbitragem se repita em situações repetidas. Ninguém é obrigado a decorar o livro de regras inteiro, mas espera-se que tenha a empatia e cortesia de esforçar-se ao máximo para ser justo e confiável. O mestre tem um poder maior sobre as "leis da natureza" do jogo, e ninguém quer entrar em um mundo no qual um buraco negro pode se abrir a qualquer momento sob seus pés ao buscar um café na cozinha.
Tampouco o mestre deve ceder a todos os desejos dos jogadores, é preciso impor limites e manter os desafios interessantes. O mestre que só quer agradar os jogadores e dar-lhes ouro de mão beijada irá sofrer muito, e os jogadores mimados logo deixarão de brincar porque o brinquedo ficou previsível demais (ainda bem que temos rolagens de dados e testes para mitigar isso!).
Em minha experiência como jogador, entrar em mesas nas quais tenho plena confiança na arbitragem do mestre é imperativo. E se você estiver pensando no contrário, isto é, na confiança do mestre em seus jogadores, bem, já cobrimos o fato no primeiro pilar: não chame para sua mesa o jogador em quem você não deposita confiança.
Bem, amigos, com isso claro, seus riscos de entrar em uma jogatina furada são muito baixos. Se, por ventura, passar por uma experiência ruim, acredito que será porque algum dos princípios acima foi transgredido. Ao menos, essa é minha humilde experiência.
Sem mais, um forte abraço!
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