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O Oráculo Cinzento

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Writer's pictureOráculo Cinzento

O jogador "pula catraca"

É tarde da noite. Uma sombra se projeta sob o pátio compartilhado de quatro prédios. As luzes piscam em tons de azul em algumas janelas: é tempo de novela. Outras, amarelas, indicam a hora da janta em família, ou uma noite de jogos, quem sabe? De súbito, ouve-se um grito. Estamos em um dos apartamentos. Ouvimo-lo novamente. E outra vez. Assomamos nossas cabeças curiosas na janela, vemos que outros o fazem. Há uma pessoa sendo assassinada no pátio! Que horror! Alguém chame a polícia! Alguém? O amigo que agora está tremendo, racionaliza: "veja quanta gente testemunhou isso, alguém já deve ter ligado para a polícia!", alguns, aliviados com o prospecto, concordam. Não, não é pura ficção, é o viés do "espectador", exemplificado pelo caso Kitty Genovese. Um caso similar é o daquele sujeito que joga o lixo na rua, porque "alguém vai limpar depois". E por quê, você deve estar se perguntando, estamos falando disso? Logo verás.


Um dos pontos pacíficos do RPG é que o mestre sempre terá mais responsabilidades e trabalho do que o jogador. Não importa quão atribulada seja sua vida, se há uma sessão marcada, ele fará de tudo para cumprí-la. Esse é o caminho.


Mas há um tipo de jogador recorrente, por mais "gente boa" que seja, que sempre se diz "sem tempo" para ler manuais, fazer ficha de personagem, para ler as anotações dos outros jogadores (ou do mestre) da sessão anterior. Mais que isso: na hora de recapitular questões essenciais, ele não se lembra do que ocorreu, dá pitaco em tudo, interrompe o jogo quando não compreende uma regra, e ainda se ultraja quando sua opinião não é acatada (ou uma combinação entre essas coisas). Inspirado por este vídeo antigo, me pergunto: por que isso ocorre?  Se fosse questão de "lição de casa", tudo bem, obrigações muitas vezes não são divertidas, apesar de importantes. Mas isso aqui é diversão. O jogador quer jogar, ou que diabos ele está fazendo ali num sábado ensolarado? E será que todo jogador tem uma rotina de 18 horas de trabalho por dia, dez filhos para nutrir e um vazamento no banheiro para arrumar? E todo mestre é um desocupado que não tem esses problemas? Muitas vezes, é o que parece estar implícito na resposta "não tenho tempo". Veja, é compreensível não ter tempo às vezes, mas este tipo de jogador insiste que não há tempo nunca. Será mesmo? Ou é desinteresse mascarado, ou é preguiça mascarada. Em todo caso, é algo mascarado.


Achou que a polêmica iria parar no jogador? Não. O mestre também pode ter culpa no cartório. Mestres arrogantes, que não ouvem seus jogadores, que ficam vários minutos a fio tecendo narrativas verborrágicas sem dar ensejo à ação, certamente desmotivarão os jogadores, que, por serem seus amigos, tendem a esconder-se encabulados por sessões à fio até, eventualmente, saírem da mesa por "razões pessoais". Outro caso é o mestre injusto, que inventa regras à todo momento, ou, na falta de regras, arbitra a mesma situação de modos drasticamente distintos. Aqui há um caso de preguiça mascarada, de não se esforçar para lembrar de regras, ou de não anotar arbitragens recorrentes. É desmotivante, porque se tem a impressão de que o mundo imaginário pode colapsar a qualquer momento, não existe uma regularidade como a que vemos na natureza da vida real. Pronto, era preciso pontuar isso para ser justo, perdoe-me a digressão.


Agora, voltemos ao jogador.


Sabemos que o jogador não precisa decorar o manual, nem precisa ler grande parte dele, só o que é pertinente a seu personagem e situações comuns de jogo. Se ele lesse 5 páginas ao dia para isso, coisa de uns 15 minutos, ele estaria muito bem-preparado para a sessão. Entretanto, para o ocupadíssimo jogador que nunca tem tempo para nada, é mais cômodo passar 3 horas por dia vendo memes no celular. A impressão que dá é de que o sujeito está "pulando a catraca", quer rir, mas não quer fazer rir. Conheço poucos mestres que não se incomodariam em ter que explicar e reexplicar regras o tempo todo, ou lembrar de um fato importantíssimo ocorrido em sessões anteriores porque o sujeito não tomou notas. Para outros jogadores, preparados e interessados, isso também é ruim.


Uma das razões principais, ao que me parece, disso ocorrer, é que, no malabarismo de desejos dentro da psique, o preparo para a sessão fica para trás porque se tem a falsa impressão de que, como o mestre deve preparar muita coisa, ele deve preparar tudo. Ou, porque jogadores mais interessados tomam notas, ele pode relaxar e esperar os outros fazerem o trabalho duro. Pensa ele: "Preciso montar um personagem bom. O mestre vai me indicar o que fazer", ou "O registro da sessão passada que o mestre escreveu é muito longo, o mestre vai me lembrar depois", ou ainda "Fiz esse mago bacana, cheio de feitiços. O mestre vai saber o que cada um faz na hora que eu precisar". É por isso que trouxe o caso da Kitty Genovese, acima. O "pula catraca" assume que não deve ter responsabilidades porque os outros farão o necessário, e ele, rei do gado que é, pode continuar seu hedonismo despreocupado, fazendo curadoria de memes e causando intriga em grupos de WhatsApp em vez de dedicar 15 minutinhos para um preparo mínimo. Nosso hobby não é como jogar video-game, ele precisa do engajamento de todos à mesa para que possamos colher seus resultados gloriosos.


Se você suspeita que um de seus jogadores seja um "pula catraca", eis algumas sugestões:


Entenda os motivos: Muitas vezes, não é por mal que alguém chega sem saber o que fazer em uma mesa o tempo todo. Pode ser que a periodicidade dos jogos é muito assídua, e isso atrapalha a rotina da pessoa. Por não querer desagradar o mestre, acaba atrapalhando a mesa por tabela. Dê total abertura para uma conversa franca a sós, e depois, junto a ele, traga para o grupo sugestões para que todos possam aproveitar melhor. Por outro lado, você, mestre, pode ser o culpado sem sabê-lo. Entender se seu estilo desmotiva a pessoa ou a mesa é importante para aprimorar a diversão geral. Você não precisa ser dramático e perguntar: "o que estou fazendo de errado?", mas sim "se tivesse que pontuar algo que não agradou na sessão, o que seria?". Já ajuda bastante. De pouco em pouco, a situação será remediada.


Limites claros: As tantas interrupções e perturbações no jogo não podem ser rotineiras. Ou o jogador se compromete a fazer o mínimo, ou é melhor jogar outra coisa. Aqui também cabe o papo franco individualizado. É preciso ser claro e mostrar o impacto que a falta de seu engajamento provoca na mesa. O caso é de bom senso: pegar o celular para responder uma mensagem corriqueira não deve ser algo digno de drama, mas, ficar jogando candy crush enquanto há uma narrativa em curso, é desrespeitoso demais. Melhor seria se tal pessoa pedisse para se retirar. Como sempre, diálogo é a chave. Se não houver cooperação (algo raro), é preciso ter coragem, ensaiar no espelho, e removê-lo da mesa.


Pequenas porções: No caso intermediário, em que o jogador não é puramente preguiçoso, mas tampouco está investido no jogo, discuta regras ou questões relevantes que afetem seu personagem de pouco em pouco, provoque-o a se apropriar das regras, a pensar na linha do tempo da campanha, enfim, a criar um pequeno e corriqueiro hábito de se engajar com o jogo e contribuir com uma experiência mais fluída.


Ó, "pula catraca", comisere-se com o pobre mestre, que labuta com tanto afinco para trazer algo interessante à mesa! Respeite os outros jogadores interessados, que entram de corpo e alma para contribuir com cenas memoráveis!


A infinita possibilidade de narrativas e a riqueza da experiência tão exclusiva a nosso hobby tem um preço: a dedicação.


Abraços cordiais,








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