Assim como aquele que se diverte com partidas extenuantes de xadrez, há quem se divirta com imagem em ação. Também existem pessoas - e me incluo nesse grupo - que se divertem com ambos. No RPG, porém, percebo que há um ódio latente contra combates bem estruturados por regras, uma torcida de nariz apelando para um jeito certo de narrar combates, amparado por uma tradição imutável. Continuo, com isso, minha cruzada quixotesca contra os donos da verdade.
Sim, é verdade que regras podem deixar o jogo mais lento, sobretudo para quem nunca jogou. Sim, é verdade que mais regras geram maior probabilidade de disputas fora do jogo. E sim, é verdade que regras podem impedir que situações complexas da realidade não sejam possíveis no jogo. Tudo isso é contingente, probabilístico, e nada definitivo. Defendo, então, que não se pode dizer que o estilo de jogo seja errado, apenas indesejável para um tipo específico de jogador. Teci muito o verbo sobre complexidade de regras neste artigo, e sobre como não deixar que regras engessem o jogo exemplificado neste outro. Mas o presente artigo fala sobre a relação disso com um mito de nossa época: o mito de que, antigamente, combates eram destituídos de regras complicadas, e movidos majoritariamente pelo senso comum. Hoje, chamam essa cultura de combat-fu. A confusão atual tem origem em dois dogmas:
"Jogar combates com regras estruturadas é ruim, pois tolhe a criatividade"
"Não havia combates estruturados ou complexos antes das edições modernas"
Reforço, usando meu escudo anti-hate, que não sou contra o combat-fu, o estilo de combate muito usado nos movimentos OSR e FKR. Ora, não fui eu criador de sistemas compatíveis com estes valores? Deixemos as cartilhas de lado aqui. E nada de evitar críticas a ídolos do jogo só por sua autoridade. Se o argumento não se sustenta, seja! Mas não se pode calar um argumento sem mais.
Enquanto o primeiro problema é mais geral, o segundo é um mito que se perpetua por conta dele, em um motor de mútuo reforço. Por isso, precisamos esclarecer o primeiro para depois desmistificar o segundo.
Vamos ao primeiro dogma.
Jogar um combate bem estruturado, com opções táticas simétricas aos dois lados, traz um senso de justiça, um modo mais verificável de cálculo de consequências. Um enxadrista acadêmico e outro intuitivo jogam sob as mesmas regras, e não por isso deixam de fazer movimentos brilhantes e criativos. O que engessa o jogo não é, talvez, a presença de regras, mas a falta de fluência com elas. Acaso Magnus Carlsen consulta livros táticos durante o campeonato? Ou o árbitro de um jogo de futebol precisa consultar as diversas regras para cada contexto? No entanto, por mais que um jogo de futebol seja fluido, o árbitro precisa de extensa formação teórica e prática.
Usar as regras de modos inusitados também é criativo, e não é menos imersivo, quando se tem em mente a ação imaginária que a acompanha. Muitos podem até consultar as regras antes de um movimento, mas fazem narrações maravilhosas sobre como seus personagens atuam em combate. Nenhuma regra, em nenhum sistema, desencoraja tal comportamento. Isso é uma questão de cultura.
Quando alguém diz que algo seja "ruim", significa, por dedução, que esteja gerando algo de indesejável, ou ferindo alguma regra, algum protocolo "bom". E, diga-me, quem detém este protocolo? Há alguma pesquisa que indique que jogar com regras estruturadas é malicioso para a maior parte dos jogadores? Ou que jogadores que joguem assim se divirtam menos? Perceba, isso não é um ataque ao modo old school de ser, é um ataque ao sujeito que não enxerga nada além de suas cercas de arame farpado.
Retomando artigos de outrora, regras mínimas ou máximas não possuem um norte absoluto. É você que deverá decidir por si. Vamos a uma possível objeção: "não quero dizer criatividade, mas sim cenas interessantes". Tudo bem, interessantes para quem? E mais, é possível usar as regras do jogo para gerar situações ou problemas interessantes de se resolver para muita gente. Algumas regras de jogo, ainda, ajudam a enfatizar um cenário ou ambientação, modelando efeitos específicos que alteram os comportamentos de cada personagem (em combate ou fora dele).
Este primeiro dogma afeta nosso tecido social gerando aversão injustificada quando confrontado com um convite para jogar um sistema de arcabouço mais robusto. Mas o outro dogma tende a ser usado para separar o joio do trigo, para justificar duas escolas divididas por uma linha do tempo: "até aqui todo mundo jogava deste jeito, agora todo mundo joga deste outro", complementado pela premissa particular "eu jogo como o pessoal das antigas", que conduz à conclusão "logo, só jogo deste primeiro jeito". Então, cava-se uma trincheira, junta-se a tropa, e vamos à guerra contra todos que discordem de nós! Então, a arma de guerra mais comum é dizer: "o jeito antigo é o tradicional, o correto a ser jogado, e você não sabe o que está fazendo".
Por sorte, esse segundo dogma pode ser mais bem refutado por fatos. O mito que circula por aí, há muitos anos, é de que, no passado, apenas o senso comum guiava o combate. Não havia disputas, não havia regras em demasia. Uma era gloriosa, na qual nada além da criatividade afetava o combate. Vamos começar de trás para frente:
Quem jogou AD&D (2e) sabe que seu combate é bem estruturado com regras. Há bônus e penalidades muito claros, e há proficiências (e.g. tumbling) que afetam o jogo. Vamos mais longe, porque há sempre o adepto da falácia "escocês de verdade" que objetará dizendo: "os anos 90 não são velha guarda de verdade". Migremos, então, para o AD&D (1e), de 1978. Quem se dignar a ler o livro, verá que existem muitas estruturas ali (p. 36-37; 105; 124 do PHB, e DMG p. 72):
Matrizes de ataque a serem consultadas;
Fatores de velocidade de cada arma (pessoalmente, gosto muito disso);
Interação entre armas e armaduras, além de ataques contra flancos;
Há um espaço mínimo para que a arma seja efetiva;
Há danos distintos de acordo com o tamanho do oponente;
Número de ataques por rodada de acordo com a arma de alcance;
Influência, em pontos percentuais (e.g. +1% per dex point), no ataque.
Que o jogo tenha sido criado a partir dos wargames já deveria ser grande indício da força das regras. Não à toa, um sinônimo para mestre comum nos manuais da época era "árbitro" (referee). Ainda pode-se objetar o seguinte: "ah, mas tudo isso é opcional! o jogo é modular!". Exatamente! Assim como todos os sistemas podem sê-lo (inclusive aquele que você odeia)!
Cito Gary Gygax, na introdução do AD&D de 1978 (tradução livre):
"...quanta racionalização pode ser aplicada em um jogo de fantasia? Há alguma, pelo menos, como você verá [...]. E enquanto não existem [regras] opcionais para a maior parte dos sistemas de Advanced D&D (pois a uniformidade de regras e procedimentos de jogo em jogo, campanha a campanha, deve ser enfatizada), há muitas oportunidades nas quais sua criatividade e imaginação não são restritas pelos parâmetros do sistema." (1e, p. 9).
Muito peculiar, de fato. Se você acha que não existiam advogados de regra na época, veja por você mesmo esse vídeo vintage aqui. Essa série de vídeos antigos mostram muitas coisas das quais discorro. Vamos a mais objeções, viajando mais ainda no tempo:
"Mas os primeiros D&D é que são o verdadeiro old school, isto é, aquele de 1973 ou as edições básicas! Ali não tem muita regra, você preenche tudo com sua imaginação". Será que todo mundo fazia isso? Convido-os a lerem as pilhas das Dragon Magazine (encontra-se o PDF de muitas por aí), na seção "Sage Advice". Tal área da revista era dedicada a perguntas e respostas exclusivamente sobre regras. Algumas dúvidas vinham, pasmem, da ausência de regras. Eis um exemplo, da Dragon Magazine nº58 de 1982:
"Poderia um anão usar uma espada longa em uma mão?" (DM58 p. 29).
Mesmo assim, sejamos justos. Os primeiros sistemas tinham menos regras escritas em seus manuais. Matt Finch fala sobre isso no famoso primer do OSR (tradução livre, já deixei o link acima):
"Jogar um jogo antigo é muito diferente dos jogos modernos, onde as regras abrangem muitas situações específicas. As regras 0e não fornecem muita orientação específica, e isso não é porque omitiram as respostas para economizar espaço." (Primer, p. 2)
Mas, questiono com toda a humildade: será que a ausência de regras realmente gerava uma cultura inteira de shaolins do improviso?
Para começar, a "edição zero" (0e) incentivava o uso das regras de Chainmail (um wargame repleto de matrizes e mecânicas para combates em massa) para resolver o assunto de modo oficial (0e p. 5). Para quem está acostumado com as regras de hoje, isso gera uma tremenda confusão, porque é preciso usar um outro jogo para mobilizar o combate. Um exemplo de regulamento, para ilustrar o ponto:
Não me parece incentivar o combat-fu, por si só.
Em todo caso, no manual da 0e há um sistema explicitamente definido como "alternativo" (0e, p. 19), no qual não se tem quase nada de regras, assim como Matt Finch nos prenunciou acima. Ali, basicamente, temos uma matriz de ataque para personagens de jogador e outra para os monstros. Só.
Mas sabemos que a ausência de regras não implica, necessariamente, jogadas de criatividade exímia. Há jogadores caricatos que só falam: "eu ataco" ou "eu defendo". E fazem-no até que o combate acabe (o oposto do combeiro!). Para estes, ter opções táticas bem estruturadas até que não cai tão mal. Não duvido que isso tenha sido um problema ali atrás, também. Aqui, realmente, é uma suposição probabilística minha, assumindo a uniformidade de certos comportamentos básicos humanos. Quiçá, foi por motivos como este que as edições subsequentes começaram a apresentar mais e mais regras. Quem sabe? O D&D B/X possui muito mais regras que a 0e, e o AD&D 1e, mais que o B/X. Assim segue.
Vimos, por esta viagem histórica, diversas instâncias de regras estruturadas, umas mais complicadas, outras menos, mas com minimalismo e maximalismo concomitantes no tempo.
Isso demonstra que o combat-fu não é um resgate de uma cultura perene da velha guarda, mas algo específico de um grupo, talvez até de um pequeno grupo, e não de uma época inteira. Podemos até dizer que seja relacionado a uma edição muito específica dentro dessa época: o D&D B/X (mais para o "B") ou alguns shaolins do OD&D. Deve ficar óbvio que o contraste "xadrez" versus "uno" já era colocado nesses tempos. A confusão que se faz é entre "velha guarda" e o "renascimento da velha guarda", este último sendo detentor de diversas inovações e revelações de pressupostos não muito óbvios (com bastante mérito!).
Para o jogador médio da época, não me parece que a maior parte aderia organicamente à cartilha do que hoje chamamos OSR, embora muitos deles realmente tenham feito isso (basta ver os streamers "grognards"). Essa percepção está pautada e corroborada com as milhares de perguntas e respostas sobre regras encaminhadas para a Dragon Magazine ao longo de seus primeiros 15 anos de existência.
Vamos logo concluir.
Para quem confia muito no árbitro e gosta de fazer manobras mirabolantes sem qualquer restrição a priori, o combat-fu é mais adequado, mesmo. Isso pode gerar fluidez, mas também muito conflito e desconfiança, coisa do tipo dois pesos e duas medidas. Seja qual for o seu caso, não se pode mais dizer que se trata de um gabarito correto de se narrar combates, nem se esconder atrás de um passado de brumas místicas que filtram tudo que é bom daquilo que é ruim. Se há um gabarito correto, ele não está nas regras de um sistema. Já sabemos a resposta: é pessoal.
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