Quando vamos a um restaurante bom, sabemos quando estamos diante de um prato primoroso. Não há exageros, nada de pizza de sushi com catupiry, cheddar e molho bolonhesa, tudo no mesmo lugar. Bom, você pode gostar disso aí, tá tranquilo, mas não me parece ser algo digno de boas notas no Master Chef.
Falei de comida porque, neste momento, estou com fome, mas a analogia é útil para falar do assunto mais pertinente à temática desse blog: a escolha de antagonistas em uma aventura. Lendo diversos módulos prontos feitos para uma série de sistemas (não vou citar nomes, estou cansado de polêmicas para essa semana, mas alguns prontamente virão à mente do leitor), percebo que há quatro grandes categorias de posicionamento: a) o carnaval; b) o zoológico; c) o monocardápio; d) a cereja do bolo. Explico.
O carnaval: Esse tipo é, digamos..., o "sem filtro" do grupo. Há de tudo, desfilando em um mesmo lugar: kobolds, orcs, goblins, lobos, vespas gigantes, dragões obesos, vampiros, arquimagos, javalis, homens-tigre e... preciso continuar? Para mim, essa é a pizza de sushi com catupiry, cheddar e molho bolonhesa. Quando cada centímetro de uma aventura é alta fantasia, nada é alta fantasia. Há uma hipernormalização do incomum, um movimento, me parece, contraproducente. Se estiver sem tempo de preparo e numa semana ruim, vamos ao drive thru sem nenhum pudor. Em um mundo fantástico, sim, é possível que exista milhares de monstros bizarros. A questão é quão consistente e compassada está sua distribuição, como veremos abaixo.
O zoológico: Esse estilo mantém uma separação entre tipos de criatura, mas as fronteiras são extremamente próximas. A sensação é a de visitar jaulas de um zoológico, uma de cada vez. Assim, há uma caverna só com goblins, outra só com anões, ainda outra só com um beholder, e tudo isso acessível por uma clareira de 50 metros de diâmetro. Outro jeito de definir isso é como um rodízio eclético: você come um sanduba, depois pizza, depois maminha na mostarda, e, para finalizar, uma lasanha. Quem nunca? Falando por mim, tanto o modelo anterior quanto este me tiram da imersão, embora não veja problemas de usá-los numa proposta cômica e despretensiosa.
O monocardápio: O oposto das situações acima, há apenas um elemento fantástico na aventura. Pode ser que todos sejam humanos, e só o vilão mago possui acesso ao sobrenatural, ou investigadores estão na cola de uma criatura cósmica bizarra, sem saber, exatamente, no que estão se metendo. Aqui o negócio nos atrai a cada curva, predando nossa curiosidade. Mas, devo pontuar, o monstro deve ter algo de surpreendente, não pode ser um simples esqueleto animado. Seria frustrante dedicar sessões e sessões de jogo para descobrir que o vilão da história é um monstro facilmente derrotável e sem sal. Para não perder a água na boca, é como aquele restaurante que se propõe a fazer um só prato, mas com muita maestria. É comum usar esse estilo para jogar investigações de horror cósmico, como em o Chamado de Cthulhu, ou gêneros como grim dark e low fantasy.
A cereja do bolo: Aqui, a questão não é usar uma só criatura, mas realçá-la sobre as demais, que estão harmonizadas com bastante equilíbrio narrativo. A densidade de criaturas é proporcional ao escopo da aventura, não é confinado a um único calabouço. Esse, ao menos, foi o princípio que empreguei em "Além do Véu: Labirintos do Éden". Há um ecossistema, naturalizado e explicado, e depois há aquela criatura inusitada. Não há pressa para introduzir tudo que é legal de uma só vez, não é fast food. São os poucos e bons, o sal no caramelo, que fazem a fantasia saltar aos olhos. Você entra cercado de elementos comuns, mas algo fora do lugar chama a atenção, e, aos poucos, a gradação da fantasia passa a se mesclar no imaginário em um crescendo que leva ao ápice, o grande monstro ou o covil de vilões inusitados. Em suma, existe a massa, o recheio, a cobertura, e a famosa cereja do bolo. Há o território dos orcs, há o território dos anões, e um bom motivo para estes não serem extremamente próximos um do outro. Por outro lado, se um dragão vermelho reside ao lado de uma grande cidade, como a situação é justificada? Tolkien o fez muito bem com Smaug, no livro "O Hobbit". Quando quero jogar algo de alta fantasia, é daqui que sou freguês.
Com todo respeito à opção de cada um, e independentemente disso, dois contrastes emergem: o fast food e o slow food. Uma bomba de gordura saturada pode até ser deliciosa, mas, na certa, a falta de moderação é nociva (eu adoro usar essa metáfora, perdoe-me aquele que já a viu em outro lugar). O outro tipo proporciona uma comida equilibrada e arquitetada com carinho, tendendo a ser menos tóxica, mas demandando mais investimento.
Pessoalmente, quero ser saudável, mas sem consumir comida insossa. Tá bem... confesso que, às vezes, me sirvo daquele ocasional dia do lixo.
Na verdade isso é uma bela analogia, apesar de que ler isso me deu uma certa fome.
Pra ser sincero tenho uma pergunta a fazer sobre isso, como você acha que devemos aplicar "A Cereja do Bolo" em título de Alta Fantasia? Quando o número de criaturas é grande, como você acha que podemos evitar cair no Zoológico ou no Carnaval?
Aliás, ótimo blog, sou novo aqui, mas gostei muito do conteúdo.