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O Oráculo Cinzento

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A polêmica das regras


Mais cedo ou mais tarde o jogador assíduo se torna mestre, e, depois de mestre, filósofo. Pois é. Já não basta conversar apaixonadamente sobre um sistema ou aventura, é preciso ascender pela torre de marfim e falar sobre os assuntos mais abstratos. Metido à besta que sou, me veio vontade de falar sobre algo assim. Não sei explicar por que preciso tanto falar sobre assunto sério de tema divertido, é algo que minha voz interna questiona: "por que não joga e fica quieto?". Fico sem resposta por um momento, mas logo engato e falo: "para algum lugar precisam ir estes pensamentos!" e "há gente que quer conversar sobre isto!". Agora vamos.


Não é de hoje que existe o embate entre partidários de jogos com regras robustas e os de regras mínimas. Em muitos casos, ambos parecem assumir posturas dogmáticas agressivas (um dos ataques caprichosos do narcisismo humano), criticando os jogadores com ataques pessoais meramente pelas regras que usam. E quem já jogou de tudo, muitas vezes fica sem entender a briga toda. Quem é que começou? O problema se coloca sob as seguintes questões:


  1. Quão importantes são as regras?

  2. Existe um número mínimo ou máximo de regras para otimizar a diversão?

  3. Qual deve ser nossa postura perante elas?


Antes de iniciarmos, precisamos desempacotar o significado de "regras". Sem uma definição, cada um entenderá como quiser, e voltaremos à Torre de Babel.


Em nosso contexto lúdico, e, portanto, eliminando as questões jurídicas, penso que "regra" signifique um passo específico a ser seguido, é o átomo de um jogo. Um conjunto de tais passos pode ser chamado de "mecânica", isto é, uma relação entre regras. Nem toda regra é criada por igual: algumas permeiam o jogo inteiro, outras só se aplicam em situações mais específicas. Quando dizemos que um jogo é "modular", significa que há conjuntos de mecânicas autônomas que, apesar de mutuamente exclusivas, não são essenciais para o funcionamento do jogo por si.


Por exemplo, em um jogo de RPG pautado por nível e classe, se removermos os regulamentos de progressão de níveis e as mecânicas que caracterizam cada classe, removeríamos também a essência de tal jogo. Permita-me adicionar uma questão tangencial: "O que caracteriza um jogo?", o que é o mesmo que perguntar "qual a essência de um jogo"? (lá vem o filósofo com o essencialismo).


Ora, me parece óbvio que um jogo incentive certos comportamentos, e deve fazê-lo de tal modo que isso seja reconhecido quando alguém falar "quero jogar tal jogo". Como o reconheceremos? Pelo conjunto de comportamentos coesos e interrelacionados que dão, na cronologia da coisa, um começo, um meio e um fim (pelo menos em uma sessão!). Isto é, para podermos dizer "ei, este foi um ótimo jogo, hein?", após testemunharmos um comportamento "A" levar para o "B" e o "B" para o "C", . Não é difícil de conceber isso. Como você sabe o que é o jogo de xadrez? Você vê as peças adornadas, o tabuleiro, mas sem as mecânicas, não passaria de um objeto de decoração. O conjunto físico, aliado aos comportamentos com os quais o usuário move cada peça, é que tornam o jogo o que ele é. Não existe jogo sem um comportamento direcionado.


Agora vamos blindar nossa definição. Acaso não seria um comportamento uma espécie de passo-a-passo? E o passo-a-passo não seria uma mecânica, como vimos? E a mecânica, por dedução lógica, um conjunto de regras? Se aceitamos a definição dada, chegamos à conclusão de que um jogo, para assim ser chamado, depende necessariamente de regras, o que é o mesmo que dizer que o jogo é um conjunto fechado de regras que determinam um começo, meio e fim para uma série de comportamentos relacionados. Sobre a diversão, bem, aí é algo que depende de cada jogo, mas ela estará intimamente relacionada, de um jeito ou de outro, às regras.


Agora que sabemos que, sem regras, não há jogo, podemos prosseguir na investigação. Fica claro, agora, porque as críticas a um sistema quase sempre são acompanhadas de um crítica a suas regras, e, por isso, também ao comportamento de seus jogadores. Não vou entrar nas questões hiper-corporativas do D&D atual, isso causaria uma digressão letal.


Pensemos no movimento "FKR" (Free Kriegspiel Revolution), do qual o Loremaster é fruto, por exemplo. Há o famoso slogan "jogue o mundo, não as regras". Não seria isso um contrassenso? Uma aberração? Não. Por mais simples que seja o jogo, ele ainda tem regras. O propósito do Loremaster, e de todo o movimento, não é eliminar regras, mas mudar a atitude dos jogadores em relação a elas, e tornar o jogo o mais leve possível para que as regras não o atrapalhem. Mas veja bem: não atrapalhar um tipo específico de jogador, aquele que simplesmente não deseja pensar em mecânicas o tempo todo (ouso dizer que não há uma maioria absoluta nesse time). No movimento "OSR" (Old School Renaissance), a máxima é suavemente distinta: "arbitragens, não regras". Novamente, isso funciona e é verdadeiro para um tipo de jogador, mas não para todos. Tampouco funciona o tempo todo. Se lermos um manual e negligenciarmos todas as suas regras (incluindo as mais essenciais), arbitrando-as de modo radicalmente diferente, nos veremos jogando outra coisa. Quero jogar D&D em uma de suas edições mais recentes, mas removo metade dos atributos, elimino as classes e níveis, evito usar o d20 e excluo o conceito de "Classe de Armadura", será que ainda posso chamar o resultado de D&D? Será que jogadores desavisados, ao serem convidados para uma mesa dessa versão de D&D, irão reconhecê-lo assim?


Para evocar o estilo de Wittgenstein, a linguagem é um jogo, mas se todo usuário da linguagem usar arbitragens particulares sem qualquer lastro na gramática, sintaxe e morfologia, não conseguiremos mais nos comunicar e o jogo perde seu sentido.


Eis a resposta para a primeira pergunta: regras são importantíssimas e não podem ser simplesmente dispensadas sem afetar a caracterização de um jogo.


Agora, entrando na polêmica, existe ou não um mínimo ou máximo de regras para otimizar nossa diversão? Já deliberei um pouco sobre isso alhures. A diversão em si depende de mais que as regras do jogo tomadas em isolamento. Digamos, jogar com pessoas que te odeiem e ofendam o tempo todo talvez não seja a melhor experiência a se ter, certo? Mas vamos ao cerne: o que significa "otimizar a diversão" nesse contexto? Lendo assim, parece que se trata de uma equação objetiva e universal, mas não é, pois cada um se diverte a seu modo. Isso, creio, seja irrefutável, embora existam modos que agradem mais ou menos pessoas em sensos estatísticos. A questão deve ser esmiuçada.


Falando por mim, que transitou por tradições muito distintas como "OSR", "FKR", "Storyteller" e "GURPS" (para trazer um pequeno alívio cômico), fica muito claro que não há um mínimo e máximo absolutos, mas sim um número que se baliza conforme a disposição e humor da pessoa e o contexto de jogo. Para mim, quando alguém critica uma pessoa simplesmente pelo sistema que ela joga no momento, há um preguiçoso e errôneo reducionismo. Quando quero jogar com pessoas inexperientes e menos dispostas a investir tempo no hobby, prefiro usar o Loremaster. Quando quero jogar algo direto ao ponto, mas com a atmosfera do clássico D&D, prefiro Arcana Primária (bem, se a mesa insistir muito em se ater à franquia, vai o D&D B/X). Horror Cósmico? Chamado de Cthulhu. Hoje, minha atenção está em GURPS (como falei tanto por aqui). Poderia falar de tantos outros, mas creio que o ponto esteja suficientemente elaborado.


Mesmo assim, há jogos que dizemos "bons" e "ruins", por quê? Quando falei em refinar a questão, é por isso. A quantidade tem uma importância marginal na resposta, e se torna relevante apenas em casos extremos (quem iria jogar algo que demanda do jogador a memorização de milhões de pequenas regras, com zero modularidade?), mas a qualidade é o que interessa sempre.


Portanto, um jogo "bom" ou "ruim" está mais atrelado à qualidade das regras e, por consequência, mecânicas. Por "bom" ou "ruim" queremos dizer "desejável" ou "indesejável", e desejável significa "aquilo que produz o que esperamos", e o que esperamos de um jogo é a diversão, o prazer. Para confirmar que um jogo é bom, precisamos sair de suas sessões com mais sensações de divertimento do que de tédio.


Para um "combeiro" obsessivo, Loremaster não é bom, porque as regras não foram desenhadas para incentivar esse tipo de hábito. Quando alguém quer um jogo que procure simular diversos fenômenos que o tornem menos sujeito aos caprichos de mestres com senso comum descalibrado, irá preferir GURPS e seus tantos módulos.


Então, sim, cada um se diverte a seu modo, mas para cada modo há um conjunto de regras qualitativamente ideal. É esse casamento que nos dá a intuição sobre a desejabilidade de um jogo.


Como comentário final nessa questão, devo dizer que, mesmo em jogos repletos de regras, o hábito faz a fluidez. Existe uma curva de experiência a ser respeitada. Ninguém vira um bom piloto da noite para o dia. Quem tem menos paciência, não vai gostar de investir muito tempo até chegar nessa tal fluidez. Está tudo bem! Jogue "FKR" ou "OSR". Se te incomoda a arbitrariedade ou liberalidade desse movimento, então jogue sistemas mais robustos, mas você terá que investir tempo entendendo como funciona o esquema. O importante é que, dada certa experiência de jogo, as regras irão fluir naturalmente na mesa, e mesas veteranas dificilmente terão tribunas de uma hora para decidir uma questão de regras. É preciso prestar atenção nessa troca pouco falada: quanto menos regras e mais arbitragens não escritas, maior o risco de inconsistências na hora de julgar situações similares ocorridas em sessões distintas. Isso pode dar um ar de "injustiça", sobretudo se a morte de um personagem estiver em jogo. Por outro lado, quanto mais regras e menos arbitragens, o jogo pode ficar engessado demais e tolher a criatividade. A forma de equilibrar a troca é a dedicação de estudo e experiência de jogo, por um lado, e a transformação de arbitragens em regras claras e acessíveis, por outro. Para trazer um pouco do que já falei acima, tanto a postura "arbitragens, não regras" e "jogue o mundo, não as regras" pressupõe apenas uma preferência de jogo, e não podem ser tomadas como verdades universais sobre o "bem jogar".


Seja como for, temos que lidar com regras, isso está claro. Mas qual deve ser nossa postura ao interpretá-las? Dificilmente regras serão objetivas e fora de alguma margem interpretativa, embora algumas sejam tão banais que sempre escapam de polêmicas.


Em primeiro lugar, é preciso compreender antes de criticar. Alguém se deu o trabalho de testar, refletir e revisar o que está escrito em um material publicado. Se você trocar uma regra por outra inventada "do zero" sem compreendê-la em seu entorno, poderá até lhe parecer que o jogo ficou mais fácil de conduzir, mas sua regra nova poderá entrar em conflito com outras tantas, e gerar situações embaraçosas contra as quais um improviso não será suficiente.


Em segundo lugar, se for impossível a compreensão de uma regra, é preciso entender se ela é realmente essencial para sua sessão de jogo. Dado o esforço que você empreendeu até aqui, é melhor improvisar do que não jogar. Quase todo manual recomenda essa atitude: se não lembrar ou não souber o que fazer, improvise agora e revise depois. Isso não contradiz o primeiro ponto? Negativo. Você não está lavrando outra regra no lugar de uma existente. Você está fazendo algo provisório somente para dar prioridade ao que interessa mesmo: a diversão. Eis aqui uma instância boa para se aplicar uma "arbitragem no lugar de regra". Uma ou outra arbitragem sempre será necessária, nenhuma mesa jogará com fidelidade completa ao manual. Mas fique atento: se tudo virar arbitragem, isso é um forte indício de que o jogo não é para você. É como já falei acima: se nenhuma regra se sustenta durante a sessão, você não está, de fato, jogando aquele jogo, mas um mutante caótico. O mutante poderá muito bem se tornar um sistema próprio (prepare-se para receber muito ódio e preconceito da comunidade), e, quiçá, o sistema próprio terá sucesso, mas assuma-o como ele é, não diga estar jogando "X", quando tudo que caracteriza "X" está ausente em seu jogo.


Também devemos lembrar que a regra é um guia comportamental, como muito martelei até agora, e ter consciência dos comportamentos que consideramos desejáveis é imperativo para decidir se um sistema é ou não é para você. Se estiver estudando um manual novo, é salutar pensar nos passos concretos e consequências lógicas que as regras mais importantes geram.


Por fim, se for criticar um sistema, critique-os revelando claramente seu gabarito e seus pressupostos do que acredita ser "desejável", e não ataque jogadores pelas regras que usam. Se o jogo possui uma base consistente de fiéis, claramente ele está suprindo os desejos de diversão dessa gente, e não será você o grande profeta a tirá-los da caverna escura da ignorância.


E toda essa saliva que gastei para concluir com a frase: "é só um jogo".
















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Floriano Junio
Floriano Junio
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